A menina que coletava ossos
- 23 de out. de 2019
- 3 min de leitura
Sentadas lado a lado, em cadeiras propositalmente posicionadas de frente para a rua, mãe e filha se refrescam sob a sombra do pé de cinamomo plantado anos antes, em frente à casa que, depois da morte do pai, pertence exclusivamente a mãe. Sem assunto, a filha que está em visita, segura nas mãos um livro, que lê enquanto não encontra assunto para puxar conversa com a mulher que já foi o centro de sua tensão e hoje não lhe diz mais nada. De vez em quando a leitura é interrompida por um carro que passa em frente à casa, deixando um rastro de poeira e curiosidade na velha, que quer saber quem está no volante e para qual vizinha será a visita. De repente, no silêncio que paira entre as duas, uma cena da infância lhe aparece na lembrança e a emoção toma-lhe conta, enquanto a mãe continua espreitando para ver na frente de qual casa o carro vai parar.
Ela tinha entre nove e dez anos de idade. Vestia uns calções de duas cores – preto liso na parte de trás e uma estampa verde, preto e branco na parte da frente. Era um dos calções confeccionados especialmente para ela, feitos pela esposa do fazendeiro com quem morava até poucos meses antes. A menina anda de camiseta e chinelos velhos pelas ruas da vila para onde mudou recentemente com os pais, duas irmãs mais velhas e a irmã caçula. Ela caminha com o olhar focado no chão, a procura de algo que lhe traga a tão almejada independência. Desde que a família se mudou para a casa do irmão, na cidade de São Luiz Gonzaga, enquanto espera o pai finalizar a construção da casa da família no bairro ao lado, que a menina observa outras crianças passando pela rua, carregando nos ombros um saco de estopa (saco de juta). Eles recolhem algo do chão e colocam no saco, e ela quer saber do que se trata. Teria a cidade algo precioso para lhe oferecer? Estava disposta a descobrir para também usufruir dos benefícios. Pouco tempo depois, fica sabendo que o que as crianças coletam pelas ruas da cidade são os ossos secos de animais mortos. Provavelmente os cachorros da vizinhança roeram os ossos até o limite, abandonando ao sol o que sobrou deles; com o tempo, foram aterrados pelas chuvas e a terra vermelha da cidade, para agora serem revelados pelo vento que varre a terra solta que os vinha encobrindo. Crianças de famílias sem muitas condições financeiras saem pela cidade depois das aulas para coletar o material que no final do dia é vendido ou trocado por frutas em algum comércio da cidadezinha. Os comerciantes vendem os ossos em grande quantidade para serem utilizados na fabricação de utensílios como botões, pentes, peças de jogos de xadrez e etc.
A menina sente falta da fazenda aonde morava com um casal de idosos que lhe cuidavam muito bem, das frutas abundantes, dos animais que eram companheiros nas brincadeiras no campo, da liberdade longe das regras da mãe e das muitas limitações que a família representa. Decidida, sem falar nada para ninguém, ela pega um saco e sai pelas ruas a procura de ossos que vai trocar por banana no ferro velho próximo da escola que estuda. Depois da aula, ela passa horas perambulando pelas ruas da vizinhança, carregando consigo um saco discreto, no qual consegue acumular meia dúzia de ossos, o suficiente para trocar por duas bananas passadas, que servem de alivio momentâneo para a saudade dos dias de abundância na fazenda.
Ao voltar em si, olha para o lado e vê a mãe sentada, olhar perdido na vizinhança, expressão serena de quem está em paz com a vida. Ao compartilhar a memória recém reavivada dentro dela, sente as lágrimas se avolumando nos olhos e no tom de voz expressa a culpa que carrega contra a mãe por não ter lhe oferecido uma infância melhor. Ela já passa dos trinta anos de idade, vive sozinha no apartamento que comprou na capital de São Paulo, trabalha para uma multinacional aonde recebe um salário mensal que o seu pai trabalhava quase o ano inteiro para receber, aprendeu a falar inglês e faz viagens internacionais, no entanto, continua assombrada pelas memórias da infância pobre e desprotegida, de quando morava debaixo do mesmo teto que os pais. Depois de anos de trabalho duro, ela percebe que não consegue usufruir da independência que há muito tempo conquistou porque se mantém presa as correntes do passado.
Obrigada por tirar tempo pra ler meus relatos Joelma! E sinto gratidão pelas palavras de apoio e incentivo. Somos grandes mulheres seguindo nossos rumos 🙏🙏🙏
Um beijo 😘
Que profundo seus textos. Que bom que me dei a oportunidade de ler todos eles e sentir cada palavra. Você se recriou Lan. Sinta-se orgulho, a cada segundo, de ser quem és hoje. Você é uma grande mulher!!!
Eu sei disso Lan; você mostra isso diariamente. Eh como nos ensina o Budismo: soltar a história; estar inteiramente presente no instante do agora. Sigamos em frente sempre nos apoiando. Sou muito grata pelo seu suporte e pela sua presença em minha vida.
Tamara, Obrigada pelas tuas sábias palavras. Estes relatos nada mais são do que histórias de momentos que já não existem mais, a não ser na minha memória. Recordar e escrever me ajuda a tomar consciência da pessoa que estou me tornando e ser grata pelas experiências que vivi, todas elas, sem exceção.
Um beijo e obrigada por ler os textos. 🙏
Não havia lido esse post ainda...tipo de narrativa que demanda uma pausa para que o impulso de reagir possa ser melhor substituído pelo responder consciente e sábio. Eu poderia reagir e falar uma porção de coisas que a minha mente egoica tão indiscriminadamente sopra, sussurra, cutuca...
Prefiro no entanto responder com a voz do meu mais autêntico eu para o seu autêntico eu, de coração para coração. Vejo que aquela menina de alma pura catadora de ossos está sendo gradual e gentilmente curada por essa mulher de quase 39 anos, cheia de esperança, coragem, confiança, força e genuíno anseio de se libertar das amarras do passado e livremente gozar da abundância que o Universo lhe possibilita no momento presente...