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Uma história sobre três datas de aniversário

  • 30 de out. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 7 de ago. de 2020

Por volta dos doze anos de idade, morava com os avós maternos e costumava sonhar em escrever. Na cidade pequena do interior do Rio Grande do Sul, quase na fronteira do Brasil com a Argentina, não tinha uma biblioteca pública ou livrarias onde pudesse comprar material escolar ou livros. A cidadezinha se chama Figueira e fica no município de Pirapó, habitada por aproximadamente 2.500 habitantes em 2018. Lá, os únicos livros que chegavam eram os usados pelos professores em sala de aula e, muito de vez em quando, uma revista em quadrinhos surgia, vinda não se sabe de onde, para a patente que ficava a poucos metros da casa em que morava. O fim dado ao livrinhos era o mesmo dado aos sabugos secos do milho e qualquer outro material que pudesse substituir o papel higiênico, desconhecido da menina até então.


Na escola que estudava, não havia uma biblioteca interna. Mesmo assim, dentro dela uma semente começava a brotar. Sonhava em contar histórias, se comunicar com o mundo. De onde veio essa vontade, ninguém sabe. Com o passar dos anos, porém, a vida foi se revelando em pequenas narrativas que ela compartilha como forma de entender, aceitar e perdoar. São enredos como a data do próprio aniversário, motivo de muita confusão interna, mesmo durante a vida adulta.


Estamos em dois mil e dezenove. Este ano ela completa trinta e nove anos de idade e ainda sente uma certa dificuldade, um certo embaraço para explicar a confusão sobre este fato, que considera tão importante por ser o início da história que vem nos contando conforme a memória lhe apresenta os fatos.


Foi no dia oito de junho do ano de mil novecentos e noventa, mais ou menos, que tomou conhecimento de parte desta confusão envolvendo o dia do seu nascimento.


- Mãe, hoje é meu aniversário, né?! Diz a menina, buscando confirmação, já que nunca fora parabenizada por alguém antes, dentro ou fora de casa. Todos os seus aniversários foram ignorados, como acontecia com os demais membros da família. A justificativa para tal comportamento era a questão financeira limitada em que viviam, como se desejar feliz aniversário e demonstrar afeto custasse algum dinheiro.


- Não. Tu nasceu no dia vinte e um de novembro, mas o teu pai te registrou errado. Responde a mãe secamente.


- Como assim? Pergunta, confusa e consciente de sua confusão. Ela só queria se sentir normal, como as amiguinhas da escola, que recebem demonstrações de afeto e um presente simples no dia do aniversário.

- Te lembra quando tu tinha seis anos e a tua irmã caçula nasceu e tu ainda não tinha sido registrada? Quando o teu pai foi fazer o registro do nascimento dela no cartório da cidade, lembrou que tu ainda não tinha uma certidão de nascimento e decidiu fazer a tua também. Ele achava que tu tinha nascido dia oito de junho, mas tu nasceu dia vinte e um de novembro de mil novecentos e oitenta.


- Ah! Então é isso que acontece quando ninguém celebra aniversário em casa. Como vamos memorizar a data de aniversário de alguém se nossos pais nunca fizeram uma celebração ou, de alguma forma, mostraram que isso importa?! Pensa consigo, sem mencionar uma palavra para não correr o risco de ser punida. Para a mãe, tudo é motivo de punição e a menina a teme mais do que qualquer outra coisa na vida.


Em sua mente de criança, aceitou que este era o começo de sua história e por quase trinta anos não voltou a tocar no assunto. Em dois mil e treze, na última visita que fez à mãe antes de mudar para o Estados Unidos, pediu-lhe que procurasse algum documento comprovando que nascera no dia vinte e um de novembro, para que pudesse corrigir a data nos documentos oficiais e assim, acabar de vez com este embaraço de ter que explicar que tem duas datas de aniversário, quando lhe perguntam o signo.


- Mas por que tem que explicar? Você pode pensar.


- Porque, quando alguém lhe pergunta o signo, diz que é de Escorpião. Sabendo

que nasceu em novembro, não quer dizer que é de Gêmeos, mesmo que seus documentos contradizem; e também não acredita ter características geminiana. Já não pode afirmar o mesmo sobre as características de Escorpião, pensa. Além do mais, por muito tempo ela se sentiu desconfortável quando os colegas lhe parabenizaram no dia oito de junho. Consciente de que não nasceu nessa data, não sentia que era seu aniversário e se sentia uma impostora. O mesmo ocorria no dia vinte e um de novembro. Conclusão, por mais de trinta anos, não celebrou em nenhuma das duas datas e passava o dia deprimida. Depois dos trinta, alguns amigos mais próximos a convenceram de que deveria celebrar nas duas datas e que eles estariam com ela.


Quando a mãe encontrou um documento que comprova a data correta, mais uma surpresa… ou melhor, outra decepção. Mais um item para a lista de ressentimentos a serem superados. Enquanto a mãe lia o documento ao telefone, mais uma vez se permitiu ficar perplexa com a falta de importância que a mulher coloca em assuntos que, no seu ponto de vista, deveriam ter grande importância e que percebe ter um peso enorme na imagem que formou de si mesma.


- Pera aí! Lê de novo que eu não entendi direito. Disse, interrompendo-a.


- Certificamos para os devidos fins que "a menina fulana de tal", nascida em oito de novembro de 1980… continuou a mulher.


- Como assim? A minha vida inteira você me fez acreditar que nasci dia vinte e um de novembro e na verdade, nasci dia oito de novembro? Falou com voz magoada.


- Ah! Vocês são muitos. Respondeu a mãe, de quem ela é a sexta filha.


E foi assim, que em dois mil e quatorze, a terceira data de aniversário lhe foi acrescentada. A princípio ficou chateada, magoada e ainda mais ressentida com a mulher que lhe trouxe ao mundo. Embora o erro nos documentos tenha sido causado pelo pai, por alguma razão ela enxerga na mãe a maior responsável pela confusão, e acrescentou mais este item na lista de coisas pelas quais sente que precisa e quer perdoá-la.


Por apenas dois anos ela comemorou o aniversário nas duas datas, como sugeriram os amigos. Logo que mudou para os Estados Unidos, a confusão voltou na mente e, nesses quase cinco anos fora de seu país, não celebrou nenhuma vez. No entanto, toda vez que explica esta parte de sua história, brinca dizendo que é especial. Somente uma pessoa muito especial poderia ter três datas de aniversário no ano, não acha?

5件のコメント


不明なメンバー
2020年8月06日

Obrigada pelo teu comentário Rosane!

De fato, tivemos também bons momentos. A vida de ninguém é feita apenas de branco ou de preto, sempre vibram todas as cores. Tenho boas lembranças também e elas surgem de vez em quando em forma de texto. Escrever sobre as experiências que me marcaram, deixando traços na personalidade, é a minha forma pessoal de expressar e de limpar o que quer que ficou de resquícios que não servem à pessoa que sou atualmente. Como adulta, estou no controle da minha vida, ou seja, sou responsável pelas escolhas que faço e as faço de forma consciente, sempre levando em consideração as possíveis consequências. Ao transformar as experiências em palavras e compartilhar, sinto alivio emocional, percebo…

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Rosane Dellaflora
Rosane Dellaflora
2020年8月03日

Poxa prima nunca soube dessa parte da tua infância passamos poucas e boas juntas mas não sabia da mágoa em seu coração tivemos uma infância precária mas fomos felizes tínhamos umas as outras pra dividir as tardes trepadas nos arvoredos comendo frutas direto do pé Deus nos permitiu crescer bem estamos longe mas sempre unidas pelo coração...te amo minha prima desde sempre

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Tamara Bassinello Ignacio
Tamara Bassinello Ignacio
2019年11月11日

Gratidão mútua minha querida! Sou sua fã!

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不明なメンバー
2019年11月03日

Obrigada pelo teu comentário Tamara! É sempre muito gostoso saber que você tira tempo para passar por aqui, ler as minhas histórias e deixar palavras de incentivo, cuidado e carinho. Sou grata pela nossa amizade! Beijo enorme.

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Tamara Bassinello Ignacio
Tamara Bassinello Ignacio
2019年11月02日

Fantástico. Sem palavras Lan. Cada vez que me aproximo mais da sua biografia, considero você uma nova mulher. Como se não bastasse ressignificar eventos passados, você vem transformando seu destino profunda e significantemente. Essa narrativa é uma das mais tocantes e mirabolantes as quais já li até aqui. Sinta a minha gratidão for tudo o que seus textos evocam em relação a minha própria história. Já estou ansiosamente aguardando a continuação desse post e não me diga que não haverá...Rs

Obrigada por compartilhar essa fatia da sua trajetória. Sinto muito pela sua dor mas celebro mais ainda as suas superações e vitórias diárias.

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