Aborto: experiência que transforma
- 31 de jul. de 2019
- 4 min de leitura
Quando acordei na quinta-feira de manhã, fui ao banheiro e vi uma pequena marca de sangue marrom no papel higiênico. Fiquei apreensiva, mas não me deixei abalar. Confiei que a gravidez se completaria e o meu filho nasceria saudável e forte como eu. Liguei para a médica, que me sugeriu repousar e ir para a emergência do hospital caso o sangramento continuasse. No consultório ela não poderia me ajudar.
Passei o dia inteiro na cama que dois dias depois me acolheria nos momentos de maior dor que já vivi. Descansei como recomendado pela obstetra e observei a natureza seguir o seu fluxo. Não havia nada que pudesse fazer, além de continuar confiando que estava tudo bem com o serzinho que eu já amava tanto. O dia acabou e não tive mais sangramento. Ufa!!! Me confortei com a ideia de que não tinha nada com o que me preocupar.
No dia seguinte acordei por volta das sete da manhã e lá estava outro sangramento. Voltei para o quarto e acordei o meu marido: “Vamos para a emergência. Algo está acontecendo.” Ele não estava acreditando que dois pequenos sangramentos em dias diferentes poderiam significar algo grave e tentou questionar. Fui firme. Ele levantou e me acompanhou.

Durante todo o tempo do atendimento fiquei confiante de que estava tudo bem. Repetir afirmações como “a vida sabe o que faz” e “aconteça o que acontecer, mesmo que eu não entenda agora, está tudo certo” me ajudou a manter a confiança e a calma até o momento em que a médica voltou com os resultados e disse que não conseguiram ouvir os batimentos cardíacos do bebê. “Eu sinto muito, mas parece que você está tendo um aborto espontâneo”, disse num tom amoroso para suavizar a dor que aquela notícia representava.
Fui liberada em seguida e retornamos para casa ainda meio atordoados. Mesmo sabendo que mais ou menos quinze por cento das gravidezes acabam em aborto espontâneo, eu não conseguia parar de me perguntar se teria feito algo para isso acontecer – me sentia responsável e culpada. Deitamos no sofá e dormimos por algum tempo. Acordamos, assistimos algo na televisão, ficamos em silêncio, nos aconchegamos um ao outro na tentativa de perceber que foi só um pesadelo, que a gravidez continuava tranquila e saudável como tinha sido até ali. Estava sendo um dia de luto e tristeza na casa que, até então, só tinha testemunhado nossas alegrias.
No sábado acordei bem, física e emocionalmente. Sugeri que saíssemos de casa para uma longa caminhada e fomos fazer uma “hike”. Passamos horas caminhando e finalizamos o dia próximo da praia, olhando para o mar e para as flores – San Diego estava tomada por flores amarelas. Mesmo através da dor, conseguimos ver o quão lindo estava o dia e aproveitamos aquele momento.
Quando o domingo chegou, veio carregado de dor. Deitada sob lençóis brancos e coberta por um edredom azul, me contorcia com as cólicas enquanto meu corpo fazia a sua parte pra liberar o feto que vinha crescendo dentro de mim durante as últimas dez semanas e meia. Era uma manhã do final do mês de março de dois mil e dezenove e, através da janela do meu quarto, podia ver as árvores do jardim do complexo em que morava, fazendo sombra para as plantas debaixo e ao redor delas. A claridade lá fora parecia ainda mais brilhante do que de costume, vista através dos meus olhos tristes e cheios de dor.
Nas horas que se seguiram até o momento em que o meu corpo concluiu a primeira parte deste processo, deixei as lagrimas lavarem os espaços recém-abertos em mim, enquanto apreciava o cuidado e o amor que recebia do meu marido, que não sabia o que fazer para aliviar o meu sofrimento. Chorei de dor e, principalmente, de tristeza pela mudança de planos inesperada. Não estava preparada para deixar ir algo tão doce que nem se quer tinha chegado e que já estava me transformando. Estava apegada a ideia de ser mãe, de formar uma família, de ter o primeiro filho com o homem que escolhi para ser o meu companheiro.
Ainda hoje consigo ouvir o barulho das crianças correndo pelo jardim, brincando feliz enquanto eu conversava comigo mesma para criar forças e ser grata por tudo, incluindo a experiência que estava vivendo. Tomada por aquela energia, fiz o melhor que pude para não resistir a experiência e manter a confiança para viver os dias que viriam pela frente. Precisava ser forte por mim e pelo meu companheiro – e, principalmente, por nós dois, pois não sabia como essa experiencia iria impactar a nossa relação.
Depois de dois meses de alegria intensa e apaixonada pela vida, os últimos dias estavam sendo os mais tristes de todos os tempos. Assim que a natureza concluiu o seu trabalho, as dores desaparecem e a paz tomou conta de mim. Foi então que encontrei espaço para ser grata também pela força e sabedoria do meu corpo, que me poupou de experienciar o procedimento de raspagem. Hoje sou grata ainda pela forma com que, cinco meses depois, consigo olhar pra trás, mesmo sentindo falta de tudo o que poderia ter sido, e continuar confiando que a vida sabe o que faz; que o melhor que posso fazer é voltar para o presente e ser feliz aqui e agora. Confio que o que tiver que ser, vai ser, e estou cada vez mais aberta para fluir com a vida e aquilo que ela me traz. Sou grata porque mesmo em meio as minhas maiores dores, estou encontrando formas de ver além do que estou sentindo e acreditar que a vida é feita de todos esses momentos; que se eu me recusar a passar pela dor, jamais vou me dar a chance de experienciar a alegria da forma como pode ser.
Comentarios