top of page

Coletando as peças do quebra-cabeça

  • 26 de jun. de 2019
  • 5 min de leitura

Atualizado: 23 de set. de 2019

Faz tempo que a curiosidade cutuca para saber sobre a formação da minha família, principalmente do lado do meu pai: qual a descendência? Seria dos índios ou dos Portugueses? Quem eram os meus bisavôs? Por razão que desconheço, ao pensar na mãe de meu pai, imagino que tenha sido filha de índios. Pele morena, cabelos pretos com alguma ondulação e volume; aproximadamente um metro e sessenta e cinco de altura, e olhos de um negro intenso. Meu avô devia ser descendente de Portugueses. Sobre a minha avó, honestamente, talvez jamais venha a saber da verdade.


Meu pai morreu quando eu tinha dezessete anos e já morava fora de casa. Nunca disse absolutamente nada sobre a sua passagem pela minha vida, nem de ninguém mais. Nas poucas memórias guardadas deste personagem que passava boa parte dos dias com um cigarro Dallas num canto da boca e acariciando o bigode negro entre o polegar e o indicador, parecia sempre bem-disposto, exceto no dia em que pegou a filha de doze anos com um de seus cigarros aceso entre os dedos. Recentemente abri investigação sobre a constituição dessa família e este tem se revelado um trabalho para uma formiguinha persistente. Por hora, foco no período entre a descoberta da doença de minha avó e o dia em que morreu, no ano de 1992. Essa experiencia começa a jogar luz na penumbra em que se encontram todas as histórias envolvendo as tribos que assinam Alves da Silva, Sagin Dellaflora e Dellaflora da Silva, da qual sou membro.


Com uma lanterninha de pilha, vou batendo de porta em porta na esperança de que em algum momento, uma delas se abra, revelando partes da minha vida que desconheço. Meus irmãos e minha mãe, como eu, não memorizaram muito sobre o que se passou ao longo desses anos. Mesmo juntando as raras recordações que temos, não forma uma figura completa; e como o meu pai também já partiu, permaneço no escuro. Estou apostando as minhas fichas na próxima oportunidade com meus tios e primos daquele lado da família.


Por enquanto, tudo o que descobri sobre a Dona Rosalina, carinhosamente tratada por Rosa, é que morreu quando eu tinha mais ou menos doze anos – ainda que eu teime em achar que tinha dez. As doenças principais foram câncer e Alzheimer, contudo não tenho certeza se eram as únicas, como se uma só não bastasse para dar uma lição de vida numa comunidade inteira. Não faço ideia de quantos anos tinha quando lhe dissemos adeus, nem mesmo como foi que encarou as doenças, se é que seria possível saber, já que o Alzheimer a acometeu anos antes do câncer.


Na lembrança mais remota, ela já não deveria estar muito lucida, pois me confundiu com uma prima pelo lado de minha mãe. Não que fosse completamente estranho de onde venho, uma avó não (re)conhecer muito bem seus netos. Me parecia natural que se enganasse. Ela tinha pelo menos cinco filhos e cada um lhe dera pela menos uma mão cheia de netos – só o meu pai lhe deu sete - e diziam que era porque não existia a televisão. Além do mais, nossos encontros com ela eram esporádicos. Ao contrário da família de minha mãe, com a do meu pai os laços nunca foram estreitados. Tudo o que a minha mãe e uma das minhas irmãs conseguem lembrar é que a vó Rosa, como costumava chamá-la, viveu poucos anos entre a descoberta do câncer e o dia de sua morte.


O interesse pela história de vida e morte dela foi aguçado pela leitura do livro “Letting Go”, escrito por Morrie Schwartz, que compartilha sobre a experiencia de viver enquanto morria de ALS - Amyotrophic Lateral Sclerosis - Esclerose lateral amiotrófica. As histórias e as lições deste corajoso homem me fizeram pensar em como poderia ter sido viver essa experiencia de forma mais presente para a minha avó. Por alguma razão, mesmo acreditando que tudo acontece exatamente como tem que acontecer, depois de muitos anos de sua morte comecei a desejar que tivesse um pouco da consciência que tenho hoje. Além de dar-lhe certo conforto, teria aproveitado a oportunidade para aprender, ao invés de desperdiçá-la como fiz. Gosto de pensar que teria feito bem a nós duas.


Recorro os arquivos e me vejo no quarto aonde vó Rosa está deitada no leito, coberta por um lençol branco de algodão espesso. Está tão magrinha penso me aproximando da cama. Paro do lado esquerdo, resguardada por dois passos de distância, que é o que a nossa intimidade permite. Tenho a sensação de que já está nessa cama por mais de um ano - minha mãe diz que ela passa por períodos intercalados entre a casa e o hospital. Foi durante uma dessas saídas do hospital que dona Rosa ficou na casa do filho, aos cuidados da nora. Mas isso eu não consigo registrar, já que estou morando com os meus outros avós, numa cidadezinha que fica umas três horas de onde estão. Esse fato alivia um pouco o peso na consciência e ajuda a explicar a razão pela qual essa fase se torna tão nebulosa.

Na primeira hospitalização, minha mãe, conhecida por ter uma saúde muito fraca, passou noites ao redor do leito, zelando pela sogra enferma. Num dado momento, o marido a proibiu de continuar nessa dedicação, já que também estava ficando adoentada. Durante as noites que passaram só as duas no pequeno quarto do único hospital público da cidade de São Luiz Gonzaga, a nora se arriscava a iniciar conversas para saber o estado da sogra. “Eu quero meus animais. Tragam meus animais.”, relata dizendo que a sogra tinha alucinações que precisava alimentar os porquinhos, as vaquinhas e as galinhas que criava no terreiro da casa em que morava com o marido, nas terrinhas que possuíam próximo dali. Em outra conversa compartilha sobre seus encontros com o meu bisavô, morto há anos. “Ela me perguntava se eu via ele”, conta a nora afirmando que não consegue ver espíritos.


Quase trinta anos depois, me encontro com meia dúzia de peças desse quebra-cabeça nas mãos e me dou conta de que quase nada sei sobre uma das mulheres mais importantes da minha vida. Acordo para o fato de que conhecer a história dos meus antepassados, principalmente das mulheres, é parte desse processo de autoconhecimento que estou vivendo, assim como conhecer a minha mãe e os meus irmãos. Me conscientizo de que quase nada sabemos uns dos as outros (ou talvez seja eu a única personagem realmente desconhecida nessa história). Toda vez que tento saber algo sobre o passado, seja sobre algum momento da infância ou qualquer outra passagem, fico inclinada a pensar que minha família esconde algo quando dizem não se recordar. A maior parte do tempo essa é a resposta que me brindam, alimentando o desperdício de enterrar os mais velhos com suas bagagens recheadas de conhecimento e sabedoria, que poderia facilmente ser transmitida aos mais novos, caso houvesse abertura e interesse entre os membros dessa tribo.

Comments


  • Twitter

© 2023 by The Book Lover. Proudly created with Wix.com

bottom of page