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Pedras se tranformam em gigantes com super poderes

  • 14 de ago. de 2019
  • 4 min de leitura

Num par de pernas rechonchudas e pezinhos ágeis, corro de uma gigante para a outra, escolhendo cuidadosamente aquela que será a protagonista da exploração de hoje. Com as mãos e dedos pequenos e fortes, trabalho sistematicamente usando toda a força que meu corpo consegue produzir e escalo cuidadosamente até o topo dessa rocha superpoderosa, capaz de me mostrar o mundo de uma forma ampla e abrangente. Posicionada confortavelmente no alto desse titã, uma escolha feita a dedo entre um grupo naturalmente manifestado muitos anos antes, nas terras do meu avô, mais especificamente, atrás da casa que moro; contemplo ao redor examinando o gramado como fazem os fazendeiros ao checar o seu rebanho, para certificar-se que tudo corre dentro dos conformes. Do alto vejo o campo em formato de L aonde as vacas do meu avô e da minha mãe comem a erva durante o dia e repousam durante a noite. Pouco mais de cinquenta metros à frente, vejo também uma parede de árvores que esconde a sanga aonde as mulheres da família lavam as roupas e todos tomamos banho durante os dias mais quentes do ano. A minha esquerda, examino a rua por onde muito de vez em quando vejo passar alguém andando a pé, de bicicleta ou carroça, neste último caso, deixando um rastro de poeira atrás de si. O mundo inteiro está diante dos meus olhos, razão pela qual essa se tornou a minha brincadeira favorita desde que me vi independente para escolher as atividades diárias ao redor da casa onde moro com a minha mãe e três dos meus irmãos. Completamente absorvida pela imensidão diante dos meus olhos, mal percebo quando a minha irmã vem me chamar de volta para casa.

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Ao entrar, a casa me parece cheia e movimentada, com aquele zum zum zum alegre que se forma quando adultos dão uma festa e convidam todos os amigos. No entanto, vejo apenas a minha mãe, duas irmãs mais velhas, uma prima que mora do outro lado da rua e minha avó materna, conversando naturalmente, sem denotada animação. A visita de minha avó é a razão de terem me chamado para dentro. Dona Rosa veio checar a nora e os netos, mas eu não tenho certeza do que causara essa inesperada visita. Mas também não importa, ainda sou muito pequena para pensar sobre esses detalhes e ando muito ocupada com as explorações no campo de pedras para imaginar que alguém precise de uma desculpa para nos fazer uma visita. O pretexto talvez seja conhecer a minha irmã caçula, mesmo que eu não a esteja vendo entre os presentes. Nem mesmo a barriga da minha mãe consigo ver com clareza de onde me sentei para fazer sala à visita. O fato é que talvez a mãe do meu pai realmente precise justificar seu deslocamento da cidadezinha onde mora até a localidade aonde está esse pedaço da família, que ela mal conhece. O trajeto que fez não é nada confortável, uma vez que ninguém na família tem carro e eu não vejo ônibus passando pela nossa cidade. Me parece um mistério a forma com que ela chegou até nós. O único veículo que está à disposição, além das próprias pernas, é uma carroça puxada por bois, na qual meu avô paterno ou a minha mãe nos transportam para onde quer que tenhamos que ir. Essa é a minha segunda diversão favorita nesses meus primeiros anos de vida. Sempre aguardo com certa ansiedade pelo próximo passeio de carroça, só para sentir os solavancos gerados pelas rodas de madeira, cobertas por uma tira de alumínio, que nos impulsiona para frente nessa acanhada estrada de terra de chão batido que liga as partes da pequena cidade chamada Figueira, localizada as margens do rio Uruguai, no município de Pirapó, bem no interior do Rio Grande do Sul. Além dos abanões, gosto de sentir a brisa tocando suavemente o meu rosto. Fecha os olhos e imagino uma mãe gentil e carinhosa declarando no toque o amor pela filha corajosa e desbravadora.

Com o rosto avermelhado e as mãos meio castanhas, entro em casa e percebo que as minhas irmãs e a minha prima têm nas mãos um alimento que nunca tinha visto. Enquanto observo com água na boca, elas dão pequenas mordidas reduzindo o formato alongado coberto por uma casca amarela, cujo aspecto me parece macio e cremoso. Nesse momento, minha avó percebe o engano. Ela deu à minha prima a banana que trouxera para mim. Claro que não gosto nada da cena, mas não pronuncio uma palavra até que alguém ordena que a minha prima compartilhe a fruta comigo, fazendo dissipar as nuvens cinzas que começavam a se aglomerar na minha cabeça pequenina.


Essa é a primeira vez que sinto o sabor doce e cativante de uma banana, fruta que se tornará uma das minhas muitas favoritas. Adulta, como banana regularmente e de vez quando, com o sabor adocicado na boca experimento também o gostinho desta memória, uma das poucas que ainda consigo reativar envolvendo a participação da minha avó paterna, mulher que não cheguei a conhecer muito bem mas que, depois de morta há muitos anos, começo a desejar que tivesse conhecido.

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